O uso predominante do critério de confiança na indicação de nomes para a Suprema Corte viola princípios republicanos e fere a Constituição, corroendo a legitimidade da corte constitucional.
A indicação do advogado Cristiano Zanin Martins, por parte do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, para ocupar a vaga deixada por Ricardo Lewandowski, no Supremo Tribunal Federal (STF), não foi uma surpresa.
O anúncio, realizado ontem, dia 1º de junho de 2023, corrobora com as especulações que circulavam há meses, principalmente devido à relação próxima entre Zanin e Lula, que se fortaleceu durante o processo da Lava Jato. Agora, Zanin pode se tornar uma figura central no cenário jurídico nacional, assumindo papel de destaque no mais alto tribunal do país.
A indicação de Zanin pelo presidente Lula seguirá para a sabatina na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), do Senado Federal. Após o envio do documento oficializando a preferência do presidente e uma vez realizada a sabatina, o nome de Zanin será submetido à votação no plenário do Senado, onde precisará do aval de mais da metade das 81 cadeiras da Casa.
Cristiano Zanin Martins ganhou destaque como advogado de Lula nos casos relacionados à Operação Lava Jato. Junto com a esposa, Valeska Teixeira Zanin Martins, comandou brilhantemente a defesa do presidente, buscando impedir sua prisão. Sem êxito nesse intento e diante da prisão de Lula, em 2018, Zanin foi o responsável por apresentar habeas corpus ao Supremo Tribunal Federal (STF), resultando na anulação das condenações de Lula e na suspeição de Moro.
Além de sua atuação nos casos notórios da Lava Jata, expondo o uso de lawfare nos processo de Lula, Zanin construiu sua trajetória profissional junto a gigantes do ramo produtivo. Um exemplo recente é a sua participação na defesa da Americanas, no processo em que o banco BTG Pactual busca a manutenção da retenção de R$ 1,2 bilhão do caixa da varejista, perante o Superior Tribunal de Justiça (STJ). Nesse caso específico, Zanin teve a responsabilidade de representar os interesses da empresa diante do Tribunal, buscando argumentos e fundamentos jurídicos para embasar a posição da Americanas frente à disputa com o BTG Pactual.
Apesar do brilhantismo indiscutível de Zanin como advogado, a indicação de um patrono pessoal do presidente da República para a Suprema Corte levanta sérias preocupações em relação aos princípios constitucionais e à integridade institucional do Tribunal.
Primeiramente, é importante ressaltar que a Suprema Corte deve ser um órgão imparcial, discreto e o mais distante possível das disputas políticas cotidianas. Sua função é interpretar a Constituição e garantir a sua aplicação com o máximo de imparcialidade e justeza. Ao indicar seu próprio advogado para a Suprema Corte, o presidente enfraquece a institucionalidade do tribunal, uma vez que traz para dentro dele um elemento de proximidade pessoal e potenciais conflitos de interesse, comprometendo a imparcialidade e a capacidade do tribunal de constituir a sua autoridade institucional.
Além disso, a indicação de um advogado pessoal do presidente fere diretamente o princípio constitucional da impessoalidade, que exige que as decisões do Estado sejam tomadas de forma imparcial e sem influências pessoais. Ao escolher alguém próximo a si para ocupar um cargo tão importante, o presidente demonstra uma inadequada falta de separação entre o interesse público e o interesse privado, comprometendo a legitimidade decisória do Tribunal.
Outro aspecto relevante é a importância da diversidade na Suprema Corte. Zanin, formado em direito pela PUC-SP, representa o perfil clássico do advogado tradicionalmente indicado ao STF: branco, paulista e de classe média. A diversidade não é apenas uma questão estética, mas fundamental para trazer diferentes perspectivas e experiências para a tomada de decisões.
Conforme nos lembra a sabedoria ancestral ameríndia: “O problema do mundo é que o múltiplo está se tornando um”. Nesse sentido, um tribunal composto por indivíduos de origens e formações diversas se torna um espaço onde a multiplicidade de perspectivas é valorizada.
A diversidade de vozes e de experiências proporciona uma atmosfera mais arejada, inventiva e imaginativa para a Suprema Corte, capaz de representar os diferentes interesses em jogo. A inteligência coletiva gerada por essa variedade de perspectivas enriquece o debate jurídico e fortalece a legitimidade das decisões tomadas, colocando um critério adicional que contribui para a representatividade, para a qualidade e para a integridade decisória do Tribunal.
A homogeneidade, por sua vez, pode levar a um debate jurídico limitado e reduzido em termos de perspectivas e experiências. A falta de diversidade pode enfraquecer a legitimidade das decisões, uma vez que não reflete adequadamente as realidades. A ausência de vozes divergentes e de pontos de vista variados pode resultar em uma abordagem unidimensional e desequilibrada no processo decisório, comprometendo a inclusividade e a diminuindo, qualitativamente, as decisões proferidas.
A trajetória do advogado indicado pelo presidente Lula também é um ponto de preocupação, que, a princípio, oferece pouca oxigenação ao Tribunal. Ao analisarmos o histórico de Zanin, percebemos que ele possui uma forte ligação com os círculos tradicionais de influência no campo da advocacia, desempenhando principalmente um papel junto a grandes conglomerados econômicos.
Sua experiência se concentra em questões envolvendo o setor produtivo, o que pode limitar sua visão e compreensão de questões constitucionais mais amplas. A indicação de um advogado paulista e branco ligado a esse campo também reforça a subrepresentação de grupos sociais no Tribunal, contribuindo para a perpetuação de desigualdades e privilégios.
Ao indicar um advogado pessoal para a Suprema Corte baseado prioritariamente na confiança pessoal, o presidente inaugura um critério pouco republicano e contrário à Constituição, esticando ainda mais a corda inaugurada por Bolsonaro e oferecendo uma aposta cega para todos os brasileiros.
Aprofunda, assim, o processo em curso de uma politização nociva da Corte, que pode comprometer e contaminar ainda mais a sua legitimidade, minando a confiança da população e prejudicando a sua capacidade de agir como guardiã dos princípios democráticos e do Estado de Direito, já tão corroídos.
Embora a confiança seja relevante em qualquer relação, no contexto da Suprema Corte, além do notório saber jurídico e da trajetória pública ilibada, é preciso coragem para assumir posições contramajoritárias e para enfrentar debates complexos em uma sociedade profundamente desigual.
A força contramajoritária é o aspecto mais importante para garantir a independência, a imparcialidade e a integridade da mais alta instância judicial do país, fortalecendo a sua institucionalidade e assegurando decisões de qualidade que reflitam os interesses da sociedade como um todo. Nesse aspecto, a indicação de Zanin pouco ou nada contribui na busca por uma representatividade mais ampla e por uma maior diversidade de perspectivas.
Ignorar esses critérios em prol da confiança pessoal enfraquece a institucionalidade do Tribunal e compromete a garantia futura e esperada de um sistema de justiça equitativo e justo, que leve a sério o enfrentamento dos problemas imensos e estruturais presentes na implementação efetiva da Constituição.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião do OJB/UFRJ.
Doutoranda em Direito na FND/UFRJ, pesquisadora, escritora, ensaísta e advogada.