Aras, o falso democrata

Como o marido cafajeste que jura amar a esposa, Aras ecoa: “Democracia, eu te amo, eu te amo, eu te amo”.

Um silêncio incômodo pairou na plateia do plenário do STF, no evento de abertura do ano judiciário, ocorrido na última quarta-feira, dia 1º de fevereiro, tendo no púlpito Augusto Aras, procurador-geral da República indicado por Bolsonaro, que encerrará o mandato em setembro deste ano.

A solenidade marcava, além do início do ano judiciário, a reconstrução simbólica e material das instituições, sob os escombros do 8 de janeiro, como destacado na campanha #DemocraciaInabalada, em imagens que recompuseram o processo de reparo da Corte Constitucional após os atos de janeiro.

Era também o sinal de um novo tempo, da tentativa de restabelecimento da relação harmoniosa entre os poderes, após os repetidos ataques nos últimos quatro anos.

Durante o evento, Aras proferiu um tipo de discurso que escolhe muito mal as palavras e citações, elencando desde desde a historiadora Lilia Schwarcz, passando pelo Papa Francisco, até chegar em Demóstenes Torres, a quem Aras se refere como “homem erudito”, ex-senador cassado e atual advogado de Anderson Torres, em fala pretensamente elogiosa à Janja.

No plenário do Supremo e usando de um tom que, para espectadores atentos, beirava o cinismo lírico, Aras disse que, assim como um poeta deve repetir o seu amor à amada todos os dias, para não se esquecer, os cidadãos, no Estado democrático de direito, precisam dizer todos os dias: “Democracia, eu te amo, eu te amo e eu te amo”.

Fingindo estar a plateia composta pelos cegos do romance de José Saramago, acometidos por uma súbita cegueira branca que teria perdurado nos últimos anos, Aras continuou entoando, em eloquente declaração amorosa: “Assim eu peço vênia a vossa excelência, em nome do Ministério Público brasileiro, ‘democracia, eu te amo, eu te amo, eu te amo’”.

O tom embaraçoso e quase vergonhoso da plateia ali presente falou por si só, mas, estranhamente, as palavras seguintes foram se encaixando e, apesar dos passos tortos, a dança discursiva de Aras pareceu se rearranjar.

Na democracia de Aras, o golpismo que dominou o cenário político desde as eleições presidenciais, no ano passado, foi a “expressão legítima da intensidade e diversidade da vida democrática em um país”. Na democracia de Aras, as omissões do Ministério Público se tornaram performance “estrategicamente discreta”.

A democracia de Aras, só imaginada por ele, da qual se proclama amante e defensor, é como a mulher do marido cafajeste, que jura amá-la todos os dias, “apenas para não esquecer”. Ama, apesar dos pesares e da barbarização cotidiana, um amor à sua maneira.

Apenas reduzindo a pó o Estado democrático de direito e pintando todo o golpismo de expressão “legítima” da diversidade democrática brasileira é que o amor de Aras pode prosperar.

Da mesma forma como já se reparam os atos do 8 de janeiro, Aras, o falso democrata, e seu silêncio propositado, nos últimos quatro anos, encontrarão, em algum momento, a devida reparação institucional.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião do OJB/UFRJ.

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